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Revi recentemente Lost Horizon de Frank Capra e se é possível ficar-se ainda mais fascinado numa segunda vez do que à primeira, foi o que me sucedeu com este filme.
A cópia estava restaurada, como li no genérico final, e isso facilita muito, claro está.
Há uma frescura neste filme: na fotografia, na montagem e nalgumas cenas. Conseguimos datá-lo essencialmente pelos cenários com um design muito anos 30 e pelas fatiotas que, aliás, são magníficas.
É na narrativa e na montagem que o filme se destaca, a meu ver: na primeira vez que o vi resisti um pouco ao atrevimento da montagem de alguns diálogos em que a imagem é simplesmente congelada enquanto a personagem continua a falar.
O tema é mesmo Capra, o realizador idealista, das grandes causas, dos temas elevados, que envolvem a vida social das comunidades. Aqui numa perspectiva mais filosófica e avançada, colocando o paraíso utópico ao alcance da humanidade. De certo modo, em todos os seus filmes a utopia está presente, implícita pelo menos, no idealismo dos seus heróis.
Se nos outros filmes os heróis conseguem melhorar um pouco as suas comunidades (bem, em It's a Wonderful Lifeessa mudança é mesmo radical), aqui o herói descobre o paraíso que está ali ao seu dispor, que pode habitar e nele permanecer até ao final dos seus dias.
E tudo acontece num momento inesperado, sem a vontade prévia das personagens que surgem, ou antes caem do céu (literalmente, o avião despenha-se) nesse lugar protegido entre as montanhas do Tibete: Shangri-La.
O diplomata pacifista, Robert Conway, o nosso herói, identifica-se quase de imediato com o lugar onde não há doenças ou guerras. Identifica-se com a sua filosofia e organização social. Ah, entretanto apaixona-se pela rapariga. Mas isso é depois do fascínio pelo próprio lugar.
De todas as personagens, a mais realista é, a meu ver, George Conway, o irmão do nosso herói, o que procura por todos os meios sair daquele lugar perdido nas montanhas. É a personagem mais à escala humana, digamos assim, mais verosímil.
Tudo fará para voltar para o conhecido, a civilização. E mesmo o facto de ter encontrado uma rapariga amável e carinhosa que o tenta convencer a ficar, nada o fará desistir.
As restantes personagens vão-se adaptando naturalmente ao lugar, depois da estranheza inicial. Encontram um objectivo, um como educador, outro como construtor.
As minhas cenas preferidas:
- naqueles cenários de design hollywood-anos 30, com canteiros muito arrumadinhos, tudo muito florido, aparece a rapariga a cavalo e o nosso herói resolve persegui-la a cavalo também. A paisagem é toda ela organizada e a natureza acolhedora, como se o clima fosse sempre assim afável e temperado, o paraíso de facto. A rapariga resolve ir nadar no lago, tal como terá sido nos paraísos originais, antes do voyeurismo civilizacional. O nosso herói é um gentleman e apenas a observa de longe. Por fim, compõe um boneco com a roupa da rapariga e afasta-se.
- o diálogo com o High Lama deste Shangri-La que o nosso herói descobre ser o francês que chegara ali há cerca de duzentos anos. O chefe espiritual daquela comunidade, o homem que depois da viagem pelas montanhas ainda tivera de amputar uma perna, e que se dedicara àquele lugar e à sua comunidade. Toda esta situação e a descoberta da idade incrível daquele homem, sentado à sua frente com um sorriso constante no rosto, seria suficiente para aterrorizar qualquer um, mas não o nosso herói. Aquela figura frágil diz-lhe mesmo que estava à sua espera para dar continuidade ao seu trabalho e o nosso herói não se deixa assustar com a ideia, embora não se sinta propriamente à altura. E quando descreve este encontro e este diálogo (resumido) aos colegas de aventuras, é com um rosto emocionado e inspirado.
- a incrível aventura da tentativa de regresso à civilização, por insistência de George, o irmão do nosso herói, em que acabam por levar a rapariga amável e carinhosa. A decisão da partida é mesmo dramática. O nosso herói sente-se dividido e se decide partir será apenas para salvar o irmão. Avisa-o, no entanto, da situação da rapariga, cuja idade não é a que aparenta naquele lugar onde se pode chegar a centenário com a maior das facilidades, mas que dali saindo passará à condição de mortal com prazo limitado de vida. A própria rapariga quer arriscar, também ela avessa a um paraíso programado à medida dos utópicos. Reparem na fotografia, nessas montanhas agrestes, na luta pela sobrevivência, quase parece cinema mudo, na mímica dos corpos e tudo. E reparem no horror de George ao ver a rapariga envelhecer de repente. A verdade é demasiado horrível para o rapaz que se despenha num precipício.
Bem, como os paraísos perdidos não são para todos, e eu arriscaria mesmo a dizer que não são à escala humana mas à medida das personagens ou dos visionários, o nosso herói irá tentar até à última voltar àquele lugar. E consegue-o, tudo indica que sim. Pode chegar lá em péssimo estado, mas chega.
Aqui não vemos o confronto do herói com uma sociedade cínica e hipócrita, como em Mr. Smith Goes to Washington (que também revi recentemente) ou em Mr. Deeds Goes to Town; nem com as suas próprias frustações e sonhos adiados, como em It's a Wonderful Life; nem mesmo um herói a ser transportado do anonimato ao poder por uma sociedade-espectáculo, como em Meet John Doe; e também não estamos num mundo hostil em que as pessoas se esfalfam para sobreviver, mas em que pode surgir a amabilidade e generosidade mais genuínas, como em It Happened One Night.
Aqui tudo é filosófico e poético, amável e harmonioso, afável e acolhedor. Mas porque é que este paraíso não nos deixa tentados, curiosos? Dá que pensar...
Em todas as histórias de paraísos, porque é que os homens os abandonam ou são expulsos? Ou simplesmente sonham com eles, antecipam-nos, mas nunca os descobrem...? Dá que pensar...O que me levou a questionar: serão as utopias habitáveis?
É que, tal como George, também eu quereria regressar ao mundo imperfeito da vida mortal com prazo limitado, ao mundo imperfeito do cinismo e hipocrisia, das paixões e erros... mas onde também mora o imprevisto e o acidental... e onde às vezes, onde menos se espera, se descobre a pura magia de um gesto genuíno.
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